Entenda como um impasse no registro de marcas fez a empresa mudar toda a sua estratégia comercial no Brasil.
Os tênis da empresa francesa Veja Fair Trade SARL são conhecidos mundialmente por sua fabricação ecológica e pela preocupação com a sustentabilidade. Produzidos no Brasil, com matéria prima brasileira, os tênis, que comumente, em outros países, levam a denominação da empresa, assumiram uma marca diferente no Brasil: desde o começo de sua comercialização, em 2014, a marca aqui utilizada é a “Vert”.
Nessa semana, contudo, dez anos após adentrar o mercado brasileiro, um dos sócios fundadores da empresa, Sébastien Kopp, anunciou que o tênis deixará de ser “Vert” para ser “Veja”, se igualando, portanto, aos demais países.
Por muito tempo, diversas teorias foram criadas para justificar a diferença da marca adotada nos tênis no Brasil. Dentre elas, a de que haveria uma estratégia comercial para que os produtos não fossem associados a outras marcas “Veja” já existentes no mercado, como a marca utilizada na afamada revista de grande circulação e aquela destinada a conhecidos produtos de limpeza.
Entretanto, a questão era muito mais técnica do que se imaginava!
No Brasil, ressalvadas algumas hipóteses muito específicas, a propriedade de uma marca somente é obtida a partir de um registro validamente expedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. É o que dita o artigo 129, da Lei da Propriedade Industrial – LPI, Lei 9.279/96.
Assim, em outras palavras, é imprescindível que um pedido de registro seja feito perante o INPI para se obter a proteção marcária em nosso território, sendo necessário, para tanto, cumprir com alguns requisitos previstos pelo referido diploma legal, que também afasta situações que podem gerar conflito e que podem descaracterizar a própria função de uma marca.
Rapidamente aponta-se que a marca possui como papel a identificação da origem e a realização da distinção de um produto ou um serviço de outros idênticos, afins ou semelhantes.
Dessa forma, não haveria como a referida lei não prever as situações nas quais um registro não pode ser concedido. Dentre os muitos incisos do seu artigo 124, o inciso XIX trata especificamente da impossibilidade de registro quando houver “reprodução ou imitação, no todo ou em parte, ainda que com acréscimo, de marca alheia registrada, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, suscetível de causar confusão ou associação com marca alheia”.
É importante expor, nesse sentido, que todo registro ou pedido de registro apresentado perante o INPI aponta, dentre outras informações, o número identificativo, a marca propriamente dita, o titular, a data depósito, uma linha do tempo expondo o que ocorreu com aquele processo, a classe de atuação e a especificação.
Dando atenção a estes dois últimos tópicos, tem-se que, mundialmente, é adotada uma classificação padrão de atuação das marcas, a chamada “Classificação de Nice”. Nela, há uma série de classes que representam produtos ou serviços pré-determinados. Por exemplo, a classe 25 é destinada a marcas que representem itens do vestuário, além de calçados e chapelaria; a classe 35, por sua vez, é reservada a serviços de publicidade e negócios. A especificação, no que lhe concerne, corresponde à livre e detalhada definição do que aquela marca representa ou irá representar.
Verifica-se, portanto, que a atividade despendida pelos interessados em determinado registro, na forma das classes e das especificações acima dispostas, é um dos itens que dita a concessão ou não de uma marca.
Voltemos à questão Vert/Veja. O anúncio tido pelo sócio da empresa trouxe à tona o verdadeiro motivo pelo qual os tênis ostentavam a marca “Vert” ao invés da “Veja”: desde 1975, já havia, em nosso País, um registro pertencente a terceiro para a marca “Veja” compreendendo a já mencionada classe 25, que, como dito, está relacionada também a calçados. Esse fato, obviamente, impedia a empresa francesa a fazer o uso da marca “Veja”, no Brasil.
Como estratégia de marketing, em 2022, a Veja conseguiu concluir a compra desse registro e, em 2023, por fim, a marca foi transferida a ela, com especificação para “roupas e acessórios do vestuário de uso comum”.
Assim, devido à referida especificação não lhe atender de forma completamente efetiva, não demorou para que a empresa depositasse outra marca constituída pelo termo “Veja” na mesma classe, cobrindo, porém, mais itens como calçados, calçados esportivos, sapatos e sapatos para esporte.
Esse último pedido foi concedido pelo INPI em julho de 2023, o que possibilitou à Veja uma base sólida para a comercialização dos tênis no formato equiparado ao restante do mundo, evitando-se assim a sua respectiva perda de identidade, afinal, a verdade é que, erroneamente, muitos estrangeiros associavam os tênis comercializados no Brasil com uma possível falsificação.
O caso em tela demonstra que o trabalho desenvolvido por profissionais atuantes no ramo da propriedade industrial não se limita apenas a registros ou concessões de marcas. Vai muito além, traduzindo-se no papel fundamental que advém de análises estratégicas comerciais atreladas a questões técnicas a serem bem observadas.
Independentemente do tamanho da empresa, o registro marcário e a adoção de medidas estratégicas são de extrema importância a ela, afinal, a bem da verdade é que as marcas correspondem a um de seus maiores ativos.
O início de todo negócio deve ter, portanto, como um de seus pilares, a proteção de sua marca nos territórios que se pretende atuar, com estratégias direcionadas a esse objetivo, que podem, inclusive e como visto, basear-se em aquisição de marca alheia.
Autores: Ornella Nasser & Mariana Figueireido